sábado, 31 de janeiro de 2009

PECADO

Oito horas da manhã de uma manhã pálida de agosto. O sol morno não é suficiente para romper o friozinho do fim de inverno, o resto da névoa da madrugada. Irradia um brilho baço, disco sem raios, que aquece a pele mais por sugestão psicológica que por calor, de fato.

Elisa está sentada na varanda de seu sítio, numa quinta a alguns quilômetros de Salém. Está enrolada numa manta de retalhos feita por sua avó quando ela ainda era uma menina, e fazia os primeiros furos nos dedos ao tentar repetir os movimentos ágeis e certeiros daquelas mãos já enrugadas.

Tudo isso lhe parece muito distante agora, embora apenas dez anos tenham se passado. Ela olha para o horizonte borrado pela luz diáfana e se vê, silenciosa, olhos grandes e sonoros, ajudando a velhinha, enquanto os irmãos e primos correm pela fazenda. Têm os rostos afogueados pela brincadeira, os cabelos colados na testa, o peito ofegante. Qual maritacas, guincham gritinhos afetados as meninas que são pegas no pique.

Ela, não. Elisa tem sete anos e está sentada na varanda, os cabelos lisos a escorrer pelos ombros, os pezinhos calçados em sapatos esmeradamente engraxados por ela mesma (embora já um tanto gastos). O vestido, simples, mas impecável, atado por uma fita lilás abaixo do busto, que ela ainda não tem – e ainda não sabe, mas não terá nunca, figura comprida, silenciosa e magra, ao contrário de suas primas, gordinhas e lindas, faces coradas, cabelos em cachos. Ela tem sete anos, mas já sente na alma o reumatismo daqueles que nascem velhos. Tem alguns retalhos no colo e se ocupa de emendá-los, pontos ainda irregulares. E fica esperando a vontade de brincar, que ela sabia que não viria.

Deixava-se ficar horas na varanda, com a avó, entre pontos e rezas, cirandas e orações. A avó lhe ensinava a bordar, a coser, a rezar e a ser uma boa esposa, quando chegasse a hora. A avó era a mulher que lhe sobrara, agora que a mãe havia morrido. Elisa só tinha irmãos. Era a caçula, a filha tão esperada. Sua avó lhe ensinava a ler a Bíblia, a entender aquelas notinhas no papel pautado e a arrematar o tricô. Estava sempre vestida de claro, suas meias eram claras, sua pele era clara, sua alma era clara. Era incapaz de falar alto, de ser ríspida, de negar ajuda a quem quer que fosse – o passarinho da asa quebrada, o gato preso na árvore, o irmão mais velho chorando pelo corte na testa. Elisa parecia Nossa Senhora, lhe dizia a avó.

Elisa nunca brincava de pique. Não podia tomar muito sol, pois sua pele era alva demais. Não agentava correr muito, pois era frágil. E, sobretudo, não gostava que lhe encostassem. Brincava sozinha: brincava de aprender a flauta, sua melhor amiga – comprida, clara, fria e reluzente como ela. Brincava de montar quebracabeças, dias a fio, montando na mesa as imagens que já tinha visto com a mente aguda, pelas poucas peças que já conseguira encaixar. Brincava de costurar, de bordar, de plantar. O pai, após a morte da mãe, havia lhe feito um jardim de margaridas. Mergulhar os dedos na terra, revolvendo-a, lhe dava imenso prazer. Era o momento em que sentava no chão, sem sapatos, desalinhava e encardia o vestido, amassava a terra molhada...

O cheiro dessa terra era o que lhe entrava agora pelo nariz, dez anos depois. O orvalho da manhã fora suficiente para desprender da terra aquele cheiro de memória, de felicidade, e ela o sorvia com dificuldade. Era o cheiro da felicidade, o cheiro que trazia da memória, e que cabia tão bem àquele momento. Deveria se casar naquela tarde, e se sentir plenamente feliz. Mas aquela felicidade toda lhe oprimia o peito, como um medo de estourar, de arrebentar, de... De quê, meu Deus?, se perguntava ela.

Estava acordada desde às cinco. Despertara de um sono leve, agitado, cheio de imagens que ela não ousava evocar, tampouco queria esquecer.

Era disso que tinha medo: de que ser feliz demais fosse pecado.

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